Brasília: uma construção com espaço calculado para nuvens e um sol na terra.
Clarice Lispector me ajudando a nomear o espanto que é voltar pra uma cidade famosa por não ter esquinas e mesmo assim constato: a encruzilhada se sobrepõe. Feliz aniversário, Brasília!
Eu provavelmente não conseguiria viver em Braga se não tivesse morado por 10 anos em Brasília.
Desde que comecei a frequentar Braga, cidade do meu marido, eu dizia: “Caramba, Braga me lembra tanto Brasília”. Não sei se pela força que fazemos pra associar algo novo a algo familiar ou pelas semelhanças de fato. Mas lembra. Lembra pelo horizonte sempre presente, pelos prédios em altura mínima, pelas árvores no meio do caminho entre as quadras, pela maneira que percorremos a cidade, pelo pôr do sol colorido, pelas estações de chuva e seca, pela lógica de espaço, visual e poética. Pelo espaço. Pelo ar. Pela natureza não exuberante e óbvia — como em cidades como o Rio de Janeiro e o Porto — mas pela paisagem que precisa ser descoberta, a não-óbviedade que as árvores do Minho e do cerrado dividem.
Tem um livrinho que me acompanhou na pós-graduação em Estudos Brasileiros quando eu ainda morava em São Paulo, lá na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (a mesma que formou Darcy Ribeiro <3). Esse livrinho chama-se “Inteligência Brasileira” do Max Bense (1965). Na época eu estava tentando escrever sobre a relação entre a poesia concreta e a inauguração da primeira Escola de Design do Brasil: a ESDI. “Poesia Concreta e Design Brasileiro: uma relação estrutural” era o nome do artigo. Nesse livro Max Bense faz muitas reflexões sobre Brasília, essa é uma delas:
“O ar de Brasília não é jamais um mero elemento de respiração, ele é também um elemento da percepção. Esta cidade é um evento visual, como um cartaz. A poeira vermelha que às vezes perpassa os seus vãos livres imprime-lhe coloração, mas nenhum cheiro. Brasília exige da consciência um novo sentido para a métrica, mas o matiz topológico de sua concepção é revelado pelo fato de que se pode, a partir de qualquer ponto de vista, representar a cidade comprimida ou distendida, relativamente aumentada ou diminuída. Numa palavra: como modelo que expõe de maneira simultânea a sua adequada realização.”
Em janeiro deste ano desembarcamos no Aeroporto Internacional de Brasília. Eu, o Rui e a Tita. Vínhamos do Rio e precisávamos trocar uma outra passagem aérea, uma “simples” tarefa que não consegui fazer nem pelo site e nem pelo whatsapp da empresa. Ao desembarcar eu sabia exatamente onde era o guichê da LATAM (TAM em outros tempos). Era onde os meus pais iam comprar passagens de avião no início dos anos 2000 com pessoas de verdade. Onde também eles conseguiam trocar milhas por idas ao Rio que duravam 1 hora e meia de avião e não 14 horas de carro.
Descer em Brasília pra mim é saber exatamente para onde vou e quais caminhos preciso fazer para chegar lá. Eu não preciso de GPS em Brasília. Para andar em Brasília precisamos saber para onde vamos antes de sair de casa. O acaso é raro. Mas acontece. E é assim que me sinto lá, com controle sobre os meus pés. Trocamos as passagens, descemos as escadas rolantes daquele aeroporto que vivi tantas idas e vindas, uma ligação no telefone: era a Samara “Onde você está?” “Aqui!” Corre, abraça um abraço de 6 anos sem se ver agora com filha, marido e as malas de sempre. Samara, essa é a minha família. Família, essa é a Samara, minha amiga desde o ano 2000. Parece uma Odisseia.
Tia Marlise, mãe da Samara, nos esperava no carro encostado ao aeroporto. “Oi Tia! Quanto tempo!” E fomos nós rumo à Sagrada Família. Passamos quase uma semana naquela casa, no dia em que chegamos um morcego nos recebeu no nosso quarto: pensei, renascimento. No dia seguinte acordamos com ovos caseiros, leite das vaquinhas da fazenda debaixo, cuscuz, café preto coado na garrafa térmica, manteiga, mamão, bananas uma mesa posta com carinho. Tomamos o café juntos, demos uma volta na chácara com os cães sempre nos acompanhando, e o Jabuti já nem tanto, Matilda apanhou acerolas do pé e comeu, conhecemos o Xixi de Macaco, o Flamboyant, todas árvores que sempre estiveram ali e eu nunca quis saber o nome. Olhamos para a graviola que estava grande como um coração inchado pelo bicho- barbeiro, mas não, não estava pronta. Tem que esperar mais, Gabi — Samara me alertava. A boca aguava. Almoçamos farofa, salada, suco de acerola, frango, feijão e arroz na varanda enquanto víamos a chuva se aproximar. Eu amo isso de Brasília, você vê a chuva se aproximando, chegando aos poucos, devagar, mas de repente basta alguns minutos pra ela encharcar tudo. Correria pra dentro de casa com as panelas, pratos, copos e muita risada. O tio Carlindo até abriu um vinho português por conta do Rui, eu fiquei no suco de acerola.
Depois que a chuva passou Samara perguntou: e aí o que você quer fazer aqui em Brasília? Eu já sabia a minha resposta desde que comecei a sonhar com essa viagem. Amiga, eu quero ir na Unb (Universidade de Brasília). Não lembro da última vez que tinha pisado na Unb, acho que foi na colação de grau quando fui a oradora dos cursos de Desenho Industrial e de Artes Visuais, Cênicas e Música. Samara só sabia chegar até o Instituto de Biologia e de lá, no banco do passageiro fui tentando explicar. Agora, vira aqui, vai por ali. E chegamos no IDA (Instituto de Artes) que era onde ficava o Departamento de Desenho Industrial. Samara e Rui riram, é aqui? Um prédio pequenino branco todo desenhado por fora. Simples. Na frente do Bambuzal, do Banco do Brasil, do Café das Letras e perto do Restaurante Universitário: é aqui.
Eu nem sei direito o que senti voltando naquele lugar com a minha filha. Percorri o corredor, passei nos ateliês, tive calafrios olhando o Ateliê de Desenho, como eu sofria naquelas aulas! Fiquei encantada com a arquitetura do prédio, eu nunca tinha reparado, eu não tinha esses olhos de agora, eu não conseguia perceber tudo o que eu estava vivendo durante a graduação. Foi um grande laboratório, desenhei, pintei, fiz aulas de canto, oficina de serigrafia, oficina de toy art, desenhei muleta, mochila, letra, roupa, aprendi metodologia de projeto, apresentei minha monografia, fiquei horas deitada no chão não fazendo nada, levei papel higiénico de casa, montei sites, criei embalagens, identidades visuais, serrei madeiras, alimentei o poliuretano, experimentei amizades, afetos, encontros de estudante, bebidas alcóolicas duvidosas, escrevi, fotografei, até salsa eu dancei no anfiteatro do ICC. Agora eu estava de volta, 14 anos depois, pensando no que significava aquele retorno ao lugar onde aprendi a construir o meu raciocínio.
Percorremos boa parte do Campus, fomos no Restaurante Universitário, no Minhocão (ICC), na Biblioteca Central, passamos pelo Anfiteatro onde estão os meus ipês brancos favoritos que florescem em agosto-setembro como algodão, passamos na frente da Reitoria, onde apliquei pra um intercâmbio com a Universidade de Lisboa e não passei. No caminho a Samara ia falando o nome de cada árvore, dos pássaros, a Matilda corria, fazia xixi na relva, o Rui fumava seu palheirinho, andamos depois da chuva com a umidade nos acompanhando. Sujamos os pés com a terra vermelha, eu até queria me sujar mais. Encontramos cogumelos nas árvores, tomamos um café no Café das letras, lembrei dos brigadeiros que comprava de algumas estudantes depois do almoço, do açaí super gelado, do trote que fugi porque o meu pai ia se mudar pro Paraná naquele dia, dos cochilos que tirava no carro, das festas, das Xerox, fiquei pensando se eu era uma ex-designer ali (às vezes me sinto uma), se existia ex-designer mesmo, ou se aprendendo a pensar em Brasília e na Unb a gente fica com essa marca pra sempre: o ponto de partida do meu pensamento será visual, espaçado e poético. Ri.
Desse dia em diante a Samara me ofereceu a direção do carro, me deu as chaves e disse: dirige, eu nem gosto tanto assim de dirigir. Eu não precisava de GPS, sabia fazer todos os caminhos. De lá fomos tomar o sorvete favorito do meu pai: sabor tapioca da Saborella. Matilda escolheu de açaí. Ficamos sentados nas mesas entre as quadras, olhando as árvores pesadas, o cheiro de chuva que sobe do concreto quente, o espaço pra pensar, um carro pra dirigir, uma melhor amiga no banco ao lado, o presente e o futuro no banco de trás, o meu pai me guiando pelas suas preferências culinárias e seus lugares favoritos. Pode dirigir. Quem entrega o seu carro e o seu caminho assim? Nem a minha mãe confia tanto em mim.
Nos dias seguintes fizemos o roteiro da saudade. Era a primeira vez que eu voltava à cidade depois de perder o meu pai. Voltei na SQS 202 bloco A. Superquadra que moramos dos anos 2000 aos 2006. A costureira da kombi ainda estava ali. A banca que eu comprava as minhas “Caprichos” e “Atrevidas” estava muito diferente. Lembrei dos meus amigos fazendo surpresa na janela pro meu aniversário de 17 anos, dos meus amigos me raptando e me levando pra tomar tequila no meu aniversário de 18 anos, senti o cheiro do ovo e da farinha do dia em que passei no vestibular, ouvi a minha mãe colocando o cd dos Queen com a música “We are the Champions”, lembrei de quando roubaram a minha bicicleta branca e vermelha, quando aprendi a dirigir, quando a Fabi ia me buscar em casa pra irmos juntas ao Body Combat, quando choramos juntas no pilotis porque gostávamos do mesmo menino, quando eu fazia escova no salão da quadra pras festas de 15 anos e pras apresentações de sapateado, quando eu almoçava todas as quintas-feiras no Pier 21 com a minha mãe. Sempre dizíamos, quando aparecer o Banco Central ou a Polícia Federal lembra que a gente mora ali do lado. Voltei ao azulejo verde e branco e por mais que a visita tenha durado cerca de 40 minutos eu me senti com 14 anos de idade e com os dedos duros demais pra poder aprender violão.
Do lado do último prédio que os meus pais moraram em Brasília — já em outro bairro — existiu um projeto pra transformar um lote de terra batida em um Bosque. “Parque Bosque do Sudoeste”, na altura era só uma quadra com terra vermelha e algumas graminhas perdidas, lembro de uma mensagem do meu pai me contando que haveria um mutirão no bairro pra plantar mudinhas de plantas que seriam as árvores do futuro Bosque. No dia do mutirão ele me avisou “plantei a minha mudinha, daqui a pouco ela já vai estar grande, vai ser uma árvore!”. Quem conheceu o meu pai sabe que ele não tinha familiaridade com esses gestos, nunca o imaginei plantando nada. Mas nesse dia ele plantou e estava muito feliz, tanto que me mandou uma mensagem pra contar e não apenas um emoji. Eu queria voltar naquele bosque pra ver a altura das árvores e pra ver se eu descobria a árvore que o meu pai tinha plantado. Quando chegamos a chuva chegou com a gente e acho que diluiu também a carga emocional do momento. Mas lá estávamos nós em busca da árvore que ele tinha plantado. 13, 14 anos depois. Fiquei surpresa com a altura das árvores, andei um pouco pelo bosque pra ver se encontrava, seria impossível descobrir, como eu sentiria? Mas me acalmava saber que ele esteve ali, abaixado, com as mãos grandes na terra, tentando plantar uma mudinha no Bosque do Sudoeste. Por mais que eu não soubesse qual era a árvore foi bom estar ali, procurando a colheita do que o meu pai semeou. A terra batida agora conseguia nos abrigar da chuva, graças àquele mutirão. De lá fomos comer mais uma comida favorita dele. E assim se deu quase a maior parte dos dias.
Uma amiga me perguntou “isso não te deixa triste? essa busca em lugares que já fomos felizes?”. Acho que até agora estou digerindo a viagem e a pergunta e o bosque e a Unb mas aí eu volto pro morcego, lembra? Encontramos um morcego morto no primeiro dia de viagem. O morcego para algumas tradições como o xamanismo, representa o renascimento. Eu senti e sinto tristeza, mas mais do que isso percebi que aquela busca era também uma atualização de memórias. Eu estava mostrando pra Tita um pedaço grande de onde ela veio. E um pedaço onde fomos muito felizes. Acho que é a primeira viagem que ela vai se lembrar. É pra ela. É pra mim. Um renascimento. Um criar de novas memórias. Até essa busca que parece ser uma busca fantasma, procuro algo que não existe mais. Mas volto como o morcego, atualizada. Eu sei agora e confirmo que no Brasil, o centro-oeste é onde o meu espírito mais vibra. Enquanto cruzava as quadras, com a Tita rindo com o nome xixi de macaco eu pensava: quando eu morrer eu quero que me joguem no pé de uma árvore do cerrado. Pode ser um ipê, um flamboyant uma embaúba, mas eu quero ficar aqui, ao pé da árvore que o meu pai plantou.
Bônus Track #1:
Clarice Lispector sobre Brasília em três trechos
“Brasília ainda não tem o homem de Brasília. Se eu dissesse que Brasília é bonita veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia veem nisso uma acusação. Mas a minha insônia não é bonita nem feia, minha insônia sou eu, é vívida, é o meu espanto. É ponto e vírgula. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil: eles ergueram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. - Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. Ai que medo.- Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. - Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. (..)
"Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece pela crispação sobrenatural do lago. - Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. - Se eu morasse aqui deixaria meus cabelos crescerem até o chão. - Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais.” (..)
“Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. - É uma praia sem mar. - Em Brasília não há por onde entrar, nem há por onde sair?”
Clarice Lispector "Brasília: cinco dias". In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, P. 162-64 ref. ( em “Inteligência Brasileira” de Max Bense, edição da Cosac&Naify, 2009.)
Bônus Track #2:
Foi coincidência mas depois de escrever a Cascata#04 percebi que hoje era aniversário de 64 anos de Brasília e de 62 anos da Universidade de Brasília. Feliz aniversário Brasília, é claro, você só poderia ter o sol na terra, em touro. Feliz aniversario, Unb. Obrigada!
que maravilha essa cascata! <3