Caravana da coragem
Ursinhos fofos e esquisitos, crianças perdidas, aventura textual e a coragem para deixar um balão subir. Escrever é sair em aventura com o coração aceso.
Esses dias, num desses momentos antes de entrar na terapia vendo bobeira na internet — porque será que a gente precisa ver bobeira na internet antes e depois da terapia? —, fui atravessada pelo nome de um filme e seu cartaz: Caravana da coragem. Eu lembro dele, pensei. Comecei a pesquisar e me deparei com imagens de ursinhos fofinhos, mas um pouco esquisitos, e de uma menina que me lembrou Drew Barrymore em E.T.
Viajei para um chão frio de casa de vó e me encontrei de férias, deitada cheia de tédio assistindo à Sessão da Tarde. Os ursinhos fofos balbuciavam um dialeto ininteligível e eu estou tomada por uma sensação comum daquela época: de aventura. Assistir a filmes de aventura me faziam imaginar: Caravana da coragem, O mestre da fantasia, Jumanji, História sem fim, O Jardim secreto e Caçadoras de aventuras são filmes que me acompanharam nas tardes de tédio da TV aberta dos anos 90, mas Caravana da coragem me acompanha também agora em 2024. O que me pegou nele hoje em dia? Primeiro, o nome. Lindo. Caravana da coragem. Caravana da coragem. Repeti em looping na cabeça. Fiquei encantada pelo fato dessas palavras estarem juntas. Sozinhas já me provocam eletricidade, mas juntas foi o próprio relâmpago. A coragem chegando em caravana numa descarga. Pensei no que seria uma caravana, pra que seria essa coragem. Uma peregrinação de pessoas corajosas rumo a alguma aventura: uma missão? Não, aventura. Vamos tirar o objetivo dessa sensação. Fui assistir ao filme de novo. Mil anos depois.
Uma família composta por um pai, uma mãe, um filho e uma filha sofrem um acidente. A espaçonave deles se espatifa e eles se perdem uns dos outros. Um desmembramento (familiar?): os adultos se perdem das crianças e as crianças se perdem dos adultos.
Quanta aflição esse filme é capaz de causar à parentalidade dos anos 2020. Hoje em dia eu sou a mãe. Mas ei, para minha surpresa, ao longo do filme, a que assisto no perfil do Disney+ da minha filha, eu AINDA me sinto a criança em caravana com os ursinhos Ewok. E cheia de coragem. Toda a narrativa acontece num futuro distópico muito detonado, degradado, insustentável (alguma semelhança com o presente), só restam alguns grupos autogeridos.
As crianças vão parar na comunidade de ursinhos Ewoks e são cuidadas por eles. Os Ewoks recebem-nas em suas pequenas casas, que são realmente confortáveis. Dão comida, remédio, cuidam delas porque sabem cuidar. Esses ursinhos habitam a floresta, buscam medicamentos e alimentos nas árvores. Convivem entre si, criam seus filhos, dançam e saem em caravanas. Sair em caravana. Uma pausa para a palavra caravana me levar pros programas do Silvio Santos. As pessoas achavam cafona, a caravana de Osasco que ia assistir ao Programa da Hebe numa segunda à noite. Quem me dera ter sido da caravana de Osasco e ter visto a Hebe de perto. Eu simplesmente amo a palavra caravana.
Voltando aos meninos perdidos: existe toda uma resistência por parte do filho mais velho a estar ali aceitando ajuda da comunidade Ewok, mas a criança mais nova, a menina, convive muito bem com os ursinhos. Eles coexistem em harmonia, ainda que não falem a mesma língua. Uma caravana é montada em expedição para procurar os pais das crianças. Os ursinhos que ficam na vila se despedem dos corajosos, que só saem, claro, depois de uma consulta com o feiticeiro da comunidade. Cada um dos viajantes leva consigo um objeto que, segundo o curandeiro, lhe será útil. Cada um carrega um amuleto pessoal e tem uma missão dentro da caravana. Achei lindo. Eu não tenho a menor pretensão de analisar o filme, a narrativa, o roteiro, nada, mas a história da Caravana da coragem e o que ela e essas crianças livres na floresta convivendo com outros seres e saindo em aventura me cativou.
Passei tanto tempo pensando nesse filme que ele me fez refletir sobre a minha própria coragem. Pra que preciso ter coragem hoje em dia? Bem, muita coisa. Escrever é uma delas. Às vezes, fico dias com um texto na cabeça querendo se formar. Procrastinando. Fugindo dele. Até que ele entra em modo caravana dentro de mim, sento na mesa, e ele finalmente se forma.
Esses dias li, não sei onde, provavelmente vendo bobeira na internet antes da terapia, que ninguém aguenta mais textos em primeira pessoa. Fiquei melindrada porque escrevo em primeira pessoa há anos e não sei se sei escrever de outra maneira. Já tentei, mas simplesmente não fica bom. Talvez em primeira pessoa também não fique. Lembrei da Caravana da coragem.
Este ano eu finalmente trouxe meus diários e agendas, desde 1998, pra minha casa em Braga (já falei isso?). Estão todos aqui comigo. Fiquei pensando que eu deveria tê-los trazido quando vim pra Portugal pela primeira vez. Como meu objeto na caravana. Meus diários deveriam ter sido esses objetos. Por que só tive coragem de trazê-los quase sete anos depois?
É preciso coragem pra carregar nossa própria história e contá-la. Além do mais, estou passando por certos processos de identificação/história de família/ancestralidade que às vezes me deixam um pouco sem-chão e ter meus cadernos comigo e escrever sobre a minha história me devolve os pés. Sem a minha história não tenho pés. E sem pés não posso sair em aventura, numa expedição acompanhada por meus livros e escritos. Escrever uma newsletter, um diário, um romance, uma candidatura de doutorado só é possível com muita coragem no coração. Essas escritas me ajudam a ter pés, e com eles eu escrevo ainda mais.
O perigo da aventura textual
Estou lendo simultaneamente uns dez livros. Até o ano passado, eu só começava a ler um livro novo quando terminava outro. Este ano me permiti diversificar. Estou vivendo a poligamia dos livros, lendo vários ao mesmo tempo e me divertindo com isso. Dentre eles, tenho lido duas autoras que escrevem em primeira pessoa, a argentina Betina González e a espanhola Rosa Montero. Acho até que a escrita delas se parece um pouco, e às vezes, sem querer, eu migro de uma para outra, e aí preciso fazer um esforço pra atualizar o avatar na minha cabeça. De Betina Gonzalez estou lendo A obrigação de ser genial, editado pela Bazar do Tempo, e de Rosa Montero, O perigo de estar lúcida (que foi prenda de aniversário de uma amiga <3), publicado pela Todavia .
A primeira parte de A obrigação de ser genial se chama “A aventura textual”, e o primeiro ensaio, “O coração na página”, já me deixou chocada. Boquiaberta mesmo. Betina começa o livro com a frase “A emoção é o fato misterioso do ato criativo”. Quase ninguém fala de emoção num texto e ela revela o porquê: pode facilmente descambar pro sentimentalismo, e os críticos caem em cima de textos sentimentais.
Foda-se os críticos e os controladores da primeira pessoa. Eu quero ler mais ensaios em primeira pessoa falando sobre a emoção no texto. Não satisfeita, a linda Betina me mandou mais esta: “A emoção na ficção — em seu sentido primário, etimológico, de “movimento” — é tão importante que a encontramos nos três pontos do processo criativo: na autora, no texto e na leitora. É uma corrente subterrânea que os atravessa. Em parte, penso, é responsável pela sobrevivência da ficção na escrita”. A emoção é o curso do rio do texto, a correnteza, as marolinhas do mar, sem ela o texto é apenas uma paisagem monótona. Emoção vem de movimento. E mais, quanto à coragem, Betina aponta (este trecho vale um destaque)
“Quem opta pela prosa sem riscos esquece desse impulso sombrio e avassalador que deveria ser a razão número um para narrar. Porque a autora que não arrisca o coração, não arrisca nada, por mais que se esforce por uma arquitetura textual elaborada.” Betina González
São João, acende a fogueira do meu coração.
Acho que sei porque estou engraçadinha ao escrever. A culpa é de Rosa Montero. Isso também aconteceu enquanto eu escrevia o meu primeiro romance. Apesar do tema triste dele, ao ler Rosa Montero, também sobre um tema triste, consegui ser um pouco engraçada. Sobre O perigo de estar lúcida, quero comentar a parte que Rosa fala sobre a grande pesquisa que fez pra escrever o livro. Uma obsessão sobre a loucura nos escritores e artistas. A autora acumulou tantos dados que depois lhe faltou coragem para sentar e escrever o livro. Eu interpretei como o momento em que ficamos tão presos em nossa própria cabeça que não conseguimos colar/montar as coisas. Eu estava me sentindo assim com todos os planetas em Gêmeos no início de junho, tudo evaporava. A minha curiosidade foi ativada, mas, por outro lado, meu poder de materializar qualquer coisa foi sublimado. Nem dos meus sonhos eu conseguia me lembrar. Acordava e era um blank. Nada ficava. Aí vai um trechinho de “O perigo de estar lúcida com uma palavra que amei conhecer (transmañando):
“Mas tenho uma torrente tão grande de dados e de ideias no cérebro que começar a escrita do livro no computador foi mais difícil pra mim que o habitual. Devo confessar que passava semanas procrastinando (ou, transmañando, para usar outra palavra maravilhosa e muito espanhola) … Sempre dá um pouco de medo de finalmente sentar-se em frente ao computador e começar a etapa da escrita formal, por assim dizer. Escrever é sem dúvida reescrever; você faz e refaz cem vezes o mesmo parágrafo e às vezes joga um capítulo inteiro no lixo.” Rosa Montero
Sobre soltar um balão de São João
No último domingo foi noite de São João. É a minha noite favorita do ano. Mais do que de Natal, Ano-novo, Carnaval, minha festa favorita é a de São João. Este ano foi a primeira vez que soltei um balão. Eu sempre filmava as pessoas soltando balões no Porto, e lembro que quando era muito pequena tinha pavor porque era proibido soltar no Brasil. Neste domingo, meu cunhado apareceu com dois balões na casa da minha sogra: um verde e um azul. Nos reunimos perto das 23h para entender como faríamos aquilo. Ninguém nunca tinha soltado balão. As crianças observavam os outros balões no céu, animadas com o potencial do nosso. Os avós aguardavam ansiosos a nossa geração, a do meio, responsável pela feitura do balãos. Fiquei tão impressionada com toda a logística que tive vontade de escrever.
Para soltar um balão é necessária a participação de muitas gerações. As crianças são as entusiastas e os mais velhos são os cautelosos, cada uma tem uma função.
Precisa-se de pelo menos quatro pessoas para arrumar o balão, abri-lo e segurá-lo até que voe. Soltar um balão é sobretudo um trabalho coletivo.
Sempre temos medo do fogo. Acender uma centelha com um papel tão fino perto me pareceu uma loucura. Mas se queríamos atingir as alturas e olhar para o céu, meu amor, era preciso coragem. E ali, havia caravana.
Assim que o balão está pronto é preciso esperar. Que o ar entre por dentro dele e o vá moldando. Eu duvidei, mas isso acontece. Ele vai se enchendo, ganhando a forma de um balão, e quando menos esperamos sentimos sua vontade de voar. É preciso saber soltar, para ele ganhar um lanço. Sentir em grupo a vontade do balão sair das nossas mãos e ganhar altura. Assim que ele voa todos ficam muito emocionados, e juntos, em caravana, gritamos para que não caia de novo. Voa, balão! Alto! Vai! Confiamos em ti!
Olhamos todos para o céu. Desde as crianças aos mais velhos. Estamos todos juntos e abraçados, torcendo para que o balão vire estrela.
Olhar para o céu gera conversas interessantes entre as crianças. Matilda falou do avô que mora no céu. E o menino Pi falou da bisavó que também já está por lá. Se calhar eles receberiam o balão.
Geralmente o primeiro balão dá errado. No nosso caso foi o verde que pegou fogo no ar e se desintegrou. Quase queimou a cerejeira. Sentimos muito medo ao vê-lo queimando. Duas pessoas perderam um pedaço de pele. Mas as crianças pediam, “ainda temos o balão azul!”. Vamos à coragem.
Bônus Track
Dois livros sobre crianças perdidas:
O arquivo das crianças perdidas - Valeria Luiselli (BR) / Deserto Sonoro - Valeria Luiselli (PT)
O Senhor das Moscas - William Golding (BR) / O Deus das Moscas - William Golding (PT)
Até a próxima Cascatinha,
Gahbe
que bom ter notícias suas, amiga! Nunca vi o Caravana da Coragem, vou procurar. Fico tão feliz quando vejo arquivo das crianças perdidas sendo lembrado e reverberando <3 te amo!