Dia da mãe em Portugal
Hoje é o dia da mãe em Portugal e partilho com vocês na íntegra um texto meu que faz parte do livro "50 abris" da Truz Truz editora, afinal, como amar as mães?
Essa Cascata#05 aconteceu quase que por acaso. Eu não tinha me programado para enviar um texto neste domingo 05/05, dia da mãe em Portugal. Ao folhear o livro “50 abris” recém-lançado pela simpática Truz Truz Editora reli o texto que escrevi em outubro do ano passado “Como amar as mães” e pensei que deveria partilhá-lo para que mais pessoas pudessem o ler neste dia da mãe em Portugal.
O livro “50 abris” surge a propósito da data comemorativa dos 50 anos do 25 de abril neste 2024. 25 de abril de 1974 marca o fim da ditadura em Portugal com uma revolução chamada a Revolução dos Cravos. Uma data que deveria ser sempre celebrada e evidenciada na história de um país. A Truz Truz editou uma publicação com 50 conversas, 50 histórias e 50 imagens tendo a liberdade como ponto de partida. São mais de 200 pessoas que moram dentro das páginas deste grande livro vermelho-cravo. Partilho com vocês um trecho da nota introdutória escrita pela editora Sara Duarte Brandão na abertura da publicação:
De setembro de 2023 a janeiro de 2024, a Truz Truz editora organizou 50 encontros literários sobre liberdade entre pessoas que escrevem "profissionalmente" e outras que escrevem como toda a gente, no simples e revolucionário ato de existir. Ouviram-se vozes de diferentes idades, nacionalidades e contextos e, por isso, nasceram histórias de diferentes géneros e formas. De janeiro a março de 2024, essas histórias ganharam corpo e cores. Agora, reúnem-se em diálogo neste livro de procura, encontro e ressignificação de uma palavra tão repetida quanto urgente: liberdade. (…) Reconheço o quão importante é lembrar para (re)construir. Com esta pluralidade de encontros ganhei o triplo do tamanho e a certeza de que ainda e só acredito na liberdade porque ainda acredito nas pessoas, porque ainda acredito no caminho que fazemos juntas, porque penso a estrada em perspetiva e perspetivo abril sempre no hoje que dá início ao amanhã. Obrigada a quem pensou com a Truz Truz um amanhã livro e livre, de palavras e pertenças - habitamos, aqui, a utopia. Rasgamos por fim mais um grito, 50 anos depois. Veio Abril. Para ficar.
No meu caso, foi no início de outubro que fui convidada a ir ao bairro do Cerco no Porto na Associação para o Desenvolvimento Comunitário do Cerco do Porto (Cerporto). Lá conversei com algumas mães e lemos juntas livros com textos sobre maternidades. Lemos em voz alta, conversamos, lanchamos juntas e o resto vocês vão ler. Enviei uma mensagem à Sara e perguntei “Posso mandar o texto na Cascata?” ela disse que “ Claro que sim <3!”. Obrigada Sara. Cá está como amar as mães neste domingo chuvoso em Portugal.
Como amar as mães
Angela, Fernanda, Carla, Rosália, Isabel, Gabriela e Sara. Foram esses os nomes que reunimos num final de tarde de uma segunda-feira no bairro do Cerco no Porto ao Oriente da Cidade, bairro social pertencente a Campanhã, bairro vizinho ao bairro da moda e das artes, Bonfim.
O sol já se despedia mas dentro daquela salinha estávamos quentinhas. Eu, Sara, Angela, Fernanda, Carla, Rosália e Isabel. Havia pão, suco, bolachas, histórias, ouvidos e abraços. Havia espaço. Ouviste o que eu disse? Havia espaço. Havia espaço e gente interessada em ouvir. Ouvir as mães. Afinal, alguém tem tempo de ouvir as mães? Alguém quer ouvir as mães? Alguém ouve as mães? As mães que perdem os seus filhos nas guerras? Nas internacionais, nas fronteiras, dentro das comunidades, alguém tem tempo para ouvir uma mãe que perde um filho?
Mas vamos voltar às mães do bairro do Cerco do Porto naquela tarde de segunda-feira. Havia também para além de um lanchinho carinhoso, provavelmente também preparado por uma mãe, porque quando vemos lanchinhos carinhosos, pensamos em cuidado, para além do cuidado e do preparo da salinha levamos livros de outras mulheres, todas mães. Qual outro espaço é destinado para estes livros para além de uma sala cheia de mães. Alguém quer ler esses livros escritos por mães? A maternidade é um assunto a ser escrito nas feiras literárias?
As mães estão lá ocupando as mesas literárias com as suas crias no colo? Uma mãe quando começa uma mesa, se diz mãe, ou se ela disser, sou mãe, os homens brancos a vão tratar de maneira diferente?
Uma vez fui convidada para uma mesa num Festival de Poesia cujo tema era o mesmo deste livro, Liberdade.
Eu era a única mulher da mesa. Eu era a única mulher e mãe da mesa. Eu era a única mulher, mãe e não branca da mesa. Eu era a única mulher, mãe, não branca e imigrante da mesa. Eu era a única mulher, mãe, não branca, estrangeira e bissexual da mesa. Eu era a única mulher da mesa numa mesa de homens. Começaram gentilmente, sendo os cavalheiros que são, a mesa por mim e eu lhes disse: poderia aqui falar de vários assuntos que dizem respeito à liberdade mas vou começar por aquele que mais tem falado alto comigo nos últimos tempos - a perda da liberdade quando nos tornamos mães. Silêncio. Pode uma mãe dizer que não gosta de ser mãe? Silêncio. Ouvi depois dos homens que ali estavam que a sua vida ganhou muitíssimo mais valor depois que se tornaram pais. Uma mulher disse ao fundo. É porque você não tem leite. Então não perdes sua liberdade. Silêncio. Fui silenciada com todas as próximas intervenções. Pode uma mãe ocupar uma mesa de um festival de poesia e reivindicar um desconforto por ser mãe? O que muda na vida de um homem quando ele se torna pai? O que muda na vida de uma mulher quando ela se torna mãe? Quem perde a liberdade?
No bairro do Cerco do Porto naquele espaço onde mães e pais deixam seus filhos para fazerem atividades complementares, para brincar, para conviver, não avistei um homem. Não estive com nenhum pai sequer. Mentira. Os ouvi. Nas bocas das mulheres. Os ouvi de maneiras monstruosas. Os ouvi como ausentes, como violentos, como criadores de traumas na vida das mulheres, dos filhos e das comunidades. E este o espaço que eles querem continuar ocupando?
Abrimos um espaço com mães para falar de maternidade. Ouvimos e lemos histórias de filhos, e como as nossas histórias de filhos estão povoadas por nossas avós. Falamos de laços, cordões, afeto, brincadeiras. De cadernos, de quem guarda as memórias de quem, são também as mães que guardam e cuidam das memórias dos seus filhos. Os filhos para aquelas mulheres são sua força. As transformaram, é verdade. Mas sabe onde toda a história de maternidade da vida real vai parar? Na violência doméstica.
O que muda na vida de uma mulher quando ela se torna mãe? O que muda na vida de um homem quando ele se torna pai? Quem cuida dos filhos de uma mulher quando ela quer viver a sua liberdade, os seus sonhos? É um homem ou outra mulher?
Como celebrar a liberdade enquanto o trabalho doméstico é ainda tratado como amor? Como celebrar a liberdade sendo que a violência doméstica é ainda vista como amor? Afinal, o que é o amor, Portugal?
Como amar as mães. É o que tenho me perguntado.
Gabriela do Amaral com Angela, Carla, Fernanda, Isabel, Rosália e Sara.
Ilustração de Ana Rita Robalo
Bônus Track
É possível ouvir os textos do livro narrado na voz de algumas pessoas, Como amar as mães foi narrado pela Ana Brandão, irmã da Sara, quem me entregou o meu exemplar do “50 abris” nas mãos. A leitura dela está linda e se você não quiser ler o texto recomendo muito ouvir a Ana e sua voz aqui.
Para comprar o “50 abris” e conhecer mais sobre a Truz Truz: aqui!
Obrigada e até a próxima Cascata,
Gahbe.