veraneio astral
chegamos à Cascata de número 9: trechos de um diário de verão, a mesma casa de praia, Olimpíadas e portais.
Passei o verão de 2022 agarrada nos diários da Virginia Woolf. Achei tão confortável encontrar nesses escritos a ansiedade para publicar livros, as caminhadas em busca de cogumelos, o tédio dos dias, os eurekas de final dos livros, os intervalos do que constitui uma escritora. O que é ser uma escritora? Ler diários de escritoras ajuda muito a responder essa pergunta. Na Cascata de número nove, pedaços do meu diário de verão.
Braga, 17 de julho de 2024
Já estive mais centrada, concentrada e focada este ano. Estive relendo meu caderno de junho e julho e senti que ele estava uma bagunça. Entre astrologia, questões do doutorado e muito de uma Gabriela meio down. É recente isso. O que será que tem me faltado? Será que falta mesmo? Quero voltar a me sentir mais organizada, mas, ao mesmo tempo, sei que essa temporada julho-agosto é o meu espaço anual de sentir, e sabe o quê? Sentir desorganiza mesmo. Ontem, percebi que pela primeira vez não terei o livro do meu pai para abrir em agosto. O livro está pronto. Na caixa de entrada de uma editora. Fantasiei receber o e-mail “Vamos publicar o seu livro!” tantas vezes. Me imaginei recebendo-o perto do aniversário de passagem do papai e a verdade é que eu sei que fantasio muito as coisas. Eu as imagino demais. E passo muito tempo vivendo no ar da minha cabeça. Mas, ao mesmo tempo, acho que imaginar me faz chegar lá. Acho que foi a minha capacidade de imaginar que me trouxe até aqui. E que me fez, por exemplo, correr 12km. Eu não escrevi sobre isso em lugar nenhum, tamanha a frustração que tive no dia. Foi uma alegria triste como tem sido algumas de minhas alegrias. Talvez a vida seja mesmo isso. Mas veja: agosto está aí e a grande generosidade do meu pai de partir num mês de pausa. Num mês suspenso, parado no tempo, grande, perdido, quente, uma soneca tirada no meio da tarde daquele tipo que babamos, suamos no sofá e acordamos quase de noite. A magia de me permitir escrever e usar este caderno pro que ele é.
Braga, 22 de julho de 2024.
10:49. Tita foi pra praia com a escola, cedo. Rui foi comprar uma romanzeira e depois ia pras roças. Eu corri ouvindo Rita Lee, banhei e cá estou, tentando escrever antes de riscar to do´s. O dia está lindo hoje, astrologicamente é uma semana mágica e boa. Quero esperar novidades, mas por ora, vou listar to do´s.
Braga, 27 de julho de 2024.
Ontem foi um trio de coincidências: (1) 1 ano que nos mudamos, (2), dia dos avós, (3) abertura das Olimpíadas. É impossível não acreditar e não sentir a presença do meu pai em todos esses movimentos. Eu sinto ele nesta casa, na mudança pra esta casa. Sinto ele guiando os meus passos como se realmente essa fosse a história que precisava ser escrita. Um tanto dolorido ver uma Olimpíadas acontecer sem ele aqui. Já é comum que eu pense mais nele no fim de julho / início de agosto, e agora aqui em casa é Olimpíadas o dia inteiro. Imagino ele sentado no sofá assistindo à natação. Meu pai, meu ancestral, meu encantado.
Braga, 29 de julho de 2024.
Acho que acabo de inaugurar as férias de verão por aqui. Tudo cheira a verão: o calor insuportável, não conseguir dormir de calor, uma mosca pousando no meu corpo, eu acordando cedo demais. Desci e fui pro jardim ler O lugar do início, da Ursula K. Le Guin. Tentei escrever na mesa da sala, mas estava quente demais lá em cima. Li O lugar do início no jardim e estou encantada. Já é um dos melhores livros que li este ano. Amo este jardim e o seu frescor de veraneio. Matilda e Rui dormem, o sino das nove tocou, é quase agosto. Tudo começou a desacelerar e amanhã faltará uma semana até que meu pai desapareça em 2021. Mas sinto ele comigo. Sempre. Não tenho estado bem com a minha mãe.
Braga, 1 de agosto de 2024.
Me exercitei no jardim pela manhã. Gosto muito de estar por lá. Pela tarde estive arrumando documentos, papéis, pastas, cadernos. Confesso que estou procurando a foto do meu pai nas pirâmides da Cidade do México e não encontro. Comi uma amora depois do almoço, a sopa do Rui com as verduras da horta estava deliciosa, e todo o resto da comida. Rebeca Andrade provavelmente ganhará uma medalha num primeiro de agosto. É agosto de novo. O terceiro sem ele. E desta vez não há nada na salmoura.
Esposende, 6 de agosto de 2024.
Um seis de agosto. 3 anos. Desta vez em Esposende, sem tanto peso, sem tanta dor, leve, conectada, talvez como eu devesse realmente sentir. Não sei, cada ano é um ano, e hoje, aqui, depois de correr, mergulhar, estar entre amigos, estou sempre pensando em você, pai. Já escrevi a sua carta e não me resta muito mais a dizer.
Esposende, 12 de agosto de 2024.
Tenho tido sonhos loucos. Hoje sonhei que a Madonna estava guardando uma sombra em bastão que eu usava em 2013. Uma sombra verde. E também sonhei com todas as mulheres de Sex and the City. Samantha estava doente mas ainda assim bonita. Quando começo a me sentir triste nesta rotina de férias tento pensar o que posso fazer pra melhorar e as respostas são as mesmas: escrever e correr.
12/08
Recebi o feedback da editora. Meu livro não foi selecionado. :(
Comecei a escrever meu novo romance (incrivelmente antes de receber o feedback).
Esposende, 14 de agosto de 2024.
Hoje parece ser o dia de algo importante. Está fazendo aquele tipo de dia dia perfeito em que em Esposende é possível ouvir o mar. Faz sol, e venta, mas não incomoda. Estive com a Tita no sol lendo um gibi da Turma da Mônica de 1999. Isso é Esposende. “Um filho é uma máquina do tempo”, sopraram no meu ouvido logo cedo. Ontem, depois de escrever mais alguns parágrafos do meu novo romance, assisti a um documentário sobre o Back to the future. Que filme impressionante. Como mexer com o tempo, passado, presente, futuro, nos magnetiza. E, afinal, é um filme sobre família. Fiquei pensando se seriam pistas para o livro. Não queria esquecer que quando corri no fim do dia, (domingo?) vi duas meninas de oito/nove anos, da mesma altura, deveriam ser irmãs, mas pareciam amigas. Uma de rosa e uma de verde. Sorri pra elas. Estavam voltando da praia juntas. Uma cena de verão. E pensei: é hora de começar a escrever o livro. Era 11 de agosto de 2024. Back to the future é um filme sobre portais e também se parece com aquela frase de Exu (Exu matou o pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje).
Esposende, 16 de agosto de 2024.
Há seis anos eu viajava para o Brasil sem saber que a minha vida mudaria. Voltei em setembro e em dezembro engravidei. Esposende é mágico. Um lugar de portal. Terminei de escrever aqui a minha tese de mestrado, o língua-mãe, vim pra cá depois que meu pai faleceu, vim pra cá pra me preparar pra receber Matilda, escrevi aqui o final do livro do meu pai, agora este novo romance, Esposende é um lugar de portal. Caminho por aí e consigo vê-los em muitos lugares para onde olho. Agora estou aqui, é de manhã, a Tita está na minha mãe e eu vou escrever. Nem me exercitar, nem ir a praia, nem correr, nem amar, escrever. Entendendo muitas coisas neste pouco tempo que tenho pra mim. A digestão aqui é lenta e o meu metabolismo também.
17/08
Morreu o Silvio Santos. Imaginário sólido. Nenhuma imagem de sua partida. Nêgo Bispo, Se uma criança nunca brincou de ser você, você precisa repensar sua trajetória. Toda criança dos anos 90 já imitou o Silvio.
Esposende, 19 de agosto de 2024.
Tanta coisa acontecendo nos últimos dias. Sílvio Santos morreu neste sábado e eu fiquei impressionada como isso me abalou. Achei muito solitário sentir isso sozinha aqui em Portugal. Aquela confirmação de que emigrei. Chorei tanto. Parece uma casa que se desfez, ou como li em algum lugar: morreu um domingo. No mais fui ao Paredes de Coura na quarta passada e no dia seguinte (na volta vimos a lua gigante gorda como um queijo morrer no horizonte), me queimei fazendo café. Já é a segunda vez que isso acontece comigo. A primeira, em 2011, fiquei 3 dias sem trabalhar com queimadura de terceiro grau. Mas agora não dei importância e de ontem pra hoje a queimadura que começou sendo apenas uma nuvem preta se transformou em um arquipélago de vulcões.
Esposende, 20 de agosto de 2024.
Rui está ensinando Matilda a nadar. Eu estou quase terminando o livro da Beatriz Nascimento. Ontem foi um dia cheio de emoções. Entrevistas, menstruação, sangue, pus, Cruz vermelha e uma nova criança porvir, a minha cunhada está grávida do terceiro filho.
Esposende, 23 de agosto de 2024.
Sinto que nada que eu escrever agora vai ser muito profícuo, Matilda está em cima da mesa de jantar de Esposende dançando Macetando da Lud e da Ivete. Ela ama essa música, fico impressionada. Tivemos os meninos, Pi e Francisco por aqui. Uma cena especial: eu dando banho nos três primos ao mesmo tempo, duas, Rui com os primos todos, os cinco, no campo aqui do lado, mexendo na terra. No mais, sinto meu corpo pesado, dolorido e com menos energia. Será da lua cheia, da menstruação e da queimadura?
Esposende, 27 de agosto de 2024
Hoje senti que as coisas por aqui começaram a enferrujar, oxidar. Os vizinhos começaram a ir embora, o barulho das famílias vai dando espaço ao silêncio, vamos nos sentindo os últimos aqui. A cada dia que passa anoitece dois minutos mais cedo. Enquanto jantamos, a noite já cai sobre nós. A alegria do verão vai se transformando num summertime sadness. É hora de ir embora. Acho engraçado que tudo isso coincida com o sol em virgem. Colocar as coisas no lugar, voltar aos hábitos, e à rotina. Mas percebo os hábitos que trouxe comigo: a atividade física, escrever, cozinhar e fico feliz com isso. Tentei brincar um pouco, estar com as crianças, mas sei o quanto ainda falta isto pra mim, conseguir abrir espaço pro lúdico, pra brincar, jogar.
Os livros que levei pra casa de praia:
O negro visto por ele mesmo: ensaios entrevistas e prosa - Beatriz Nascimento, Ubu Editora.
A queda do céu: palavras de um xamã yanomami - Davi Kopenawa e Bruce Albert, Companhia das Letras.
Tembreabrezi O lugar do início - Ursula K. Le Guin, Editora Europa-América.
O perigo de estar lúcida - Rosa Montero, Todavia.
Até a próxima cascata,
Um beijo cariñoso do último dia de agosto,
Gahbe
❣️