Cascatas de Carnaval
Em semana de carnevale, 4 cascatinhas temáticas pra vocês.
La montaña fluye, el río está sentado.
Dōgen

Cascatinha de Carnaval (1)
estou sentada no chão. não estou num berço. não estou em um marsúpio ou em um colchão. em um tapete. estou sentada no chão. de fralda. fixada na terra. como uma árvore. tenho a cor de um tronco. marrom. a minha pele brilha. tenho flores na cabeça. flores amarelas na cabeça. como as flores que a minha mãe me trouxe na maternidade no dia em que matilda nasceu. tenho flores de plástico penduradas no pescoço. e uma saia de fitas da cor laranja. pareço uma havaiana. estou fantasiada de havaiana. sou brasileira. dá pra ver, sou brasileira. até hoje sabem que sou brasileira, de longe. estou pronta para o carnaval de 1988. o meu tronco está firme. como o tronco de uma árvore. as minhas flores estão desabrochadas. como as flores de uma árvore. estou sorrindo. é carnaval. estou sorrindo. estou feliz. as minhas mãos parecem uma continuação de um bater de palmas. estou batendo palmas. estou dançando. fixada no chão. é verão. faço música com as mãos. estamos na casa de praia em rio das ostras. é verão. atrás de mim há um gramado e um vaso de plantas. estou no mesmo nível delas. da grama, das folhas, do vaso de plantas. vejo os meus pais acima de mim. como anjos. vejo o que eles não veem. antecipo-os o que é estável, terreno, eu sou a sua estabilidade. eu sou o que os mantém. o que lhe dá forças. eu sou a raiz dos dois. a raiz de ambos. eu sou a ramificação de seus genes. levo água. levo nutrientes. eu sou o seu alimento. eu sou a continuação de suas histórias. sou uma árvore. uma pequena árvore de verão. sou o futuro. sou o passado. pronta para o carnaval. sou morena, sou feliz, sou alegre, gosto de dançar, sou solar, gosto do verão, gosto de ter os pés no chão, a pele à mostra, flores na cabeça, gosto de usar saias, gosto de música, do ritmo. sou latina. sou indígena. tenho os bracinhos fortes. dá pra ver. os meus ombros sobressalentes. até hoje. tenho os braços fortes. carrego grandes pesos. mas estou fixada. estou no chão. sentada. rasteira. estável. fixa. raiz. este é um retrato das minhas raízes. pareço a moana.
Vulcão Sentado é um poema meu do livro “Língua-mãe” (Fresca, 2021, Portugal) e “Pequenas Erupções” (7letras, 2022, Brasil)
Cascatinha de Carnaval (2)
Raras eram as vezes, mas acontecia de no Carnaval nos aventurarmos em descer pra região dos lagos. São Pedro da Aldeia, casa do meu tio. Naquele Carnaval toda a família do meu pai se apertou na casa do Tio Jefo. A Tia Alba, cozinheira de mão cheia, fez à mão quinze pizzas enquanto eu e os meus primos nos estapeávamos na varanda jogando baralho. Tapa no Rei era o jogo do momento. Um tapa na carta e outro num mosquito naquela noite quente de verão. A televisão cheia de chuviscos sintonizada na Globo do litoral, os desfiles passando na TV. Quem quisesse podia arriscar uma matinê no clube. Nem todo mundo quis ir, meu pai foi, eu fui com ele. Em vez de ficar na frente do palco preferi brincar no balanço. Perto de mim, meu tio e meu pai conversavam enquanto bebiam cerveja. Meu tio confidenciou: vinha aí o seu segundo filho. Eu ouvi um segredo de irmãos.
Cascatinha de Carnaval (3)
Conheci Liana no meu primeiro estágio, na Federação Espírita Brasileira, em Brasília. Trabalhávamos na mesma sala. Uma de costas para a outra. Aquariana, cursava comunicação social na UnB. Trabalhava na área de audiovisual da TVCEI: a webtv espírita em que éramos estagiárias. Eu fazia parte da equipe de design. O nosso chefe era um peruano, indígena-espírita, pisciano. Apesar de trabalharmos costas com costas, trocávamos muito, principalmente quando íamos pegar um copinho de café melado de açúcar da garrafa térmica que ficava na entrada do segundo andar. Liana Lessa. Apesar de ser descendente de italianos também tinha traços indígenas. Era grande como eu. Partilhávamos o desejo de estudar fora. Na Itália. Sonhávamos alto. Fora daquela sala cinza da L2 Norte que ficava perto demais da nossa faculdade. Eu a achava disruptiva. Logo, com o dinheiro que ganhava ali e em outros lugares, alugou um apartamento mais perto do trabalho e da faculdade. No open house que bebemos vodka barata na varanda baixa de sua casa, e na volta pra casa quebrei, sem querer, a tela do meu primeiro laptop. Nunca consegui consertá-lo. Anos depois soube que Liana estava trabalhando na Conspiração, no Rio. Eu acompanhava seus passos pela internet. Quando percebi, ela já estava na Alemanha. Na Bauhaus! Liana agora estudava design. Um dia me escreveu: “Vamos nos falar pelo Skype?”. A vida no inverno alemão era solitária, mas ela estava muito feliz, sentia que finalmente tinha encontrado o que queria fazer. Eu contei que estava em São Paulo, mas de mudança para o Rio. Queria morar no bairro em que ela havia morado: Botafogo. Ela me deu logo uma dica: Procura apartamento no OLX. Eu: No OLX? Ela: Sim, às vezes nem tem foto, mas se a rua for boa vale a pena ligar pra marcar. E ali em Botafogo tem um restaurante delicioso, chama Caravelas do Visconde. Melhor carne, batata, arroz com brócolis e chopp da região. Um mês depois encontrei um apartamento pela OLX na Visconde de Caravelas. Fechei o negócio e fui comemorar no Caravelas do Visconde. Algum tempo depois ela voltou da Alemanha e escreveu “Voltei e quero encontrar todos os meus amigos no Carnaval”. Sem combinar, nos esbarramos às três horas da manhã na concentração de um bloco no Centro. Abraço apertado. Liana! De novo nós na mesma cidade! Costas com costas. Bom Carnaval pra gente! Era sexta-feira. Na terça, o dia amanheceu na Sapucaí. A terça-feira gorda começou rosa, mais um dia de sol. Eu peguei um ônibus que saiu do sambódromo e foi margeando o Aterro, o Pão de Açúcar me acompanhando. Ao chegar em casa, não consegui dormir. Ainda com glitter no corpo e o samba da Mangueira na cabeça, peguei o celular e entrei no Facebook. Uma mensagem no mural: Liana havia partido. Morreu na segunda-feira de Carnaval. Mandei uma mensagem pra uma amiga em comum. Era verdade. Tinha acabado de completar trinta anos e aquele foi o seu último Carnaval, o nosso último abraço. Não tive paz e fiquei sem saber se ia conseguir continuar no cortejo. Mas voltei e pulei mais um bloco. Algum tempo depois encontrei uma outra amiga em comum e falamos muito dela. O último trabalho que ela tinha feito: uma espécie de coração-joia que se acendia quando a outra parte, o outro coração-joia, estava virada pra mesma direção, não importava o lugar no mundo, bastava estarem virados pra mesma direção que eles se acendiam. Conexão. Foi um Carnaval estranho. O meu primeiro vendo a Mangueira fechar a Marquês de Sapucaí e o último de Liana. Naquele ano a Portela foi campeã, e eu perdi os meus chinelos apertada pela multidão em Madureira.
Cascatinha de Carnaval (4)
As minhas amigas se fantasiaram de marinheira e pirata. Em todos os blocos encontraram seus respectivos pares, os meninos fantasiados de marinheiro e pirata. Eu me fantasiei de joaninha. Não encontrei nenhum respectivo. Ninguém fantasiado de besouro. No segundo dia, a mesma coisa. Voltei sozinha com uma fantasia sem correspondente. No último dia de Carnaval, já sem esperanças, me fantasiei de mexicana. Depois de errarmos o horário de muitos blocos no Centro do Rio, nos enfiamos num metrô rumo à Zona Sul. Subimos na estação Uruguaiana. Passamos pela Carioca. Cinelândia. Estação da Glória. Quando a porta se abriu lá estava um rapaz vestido de mexicano. Nos beijamos até o Largo do Machado. Ele desceu. Nesse dia me tornei poeta.
_____ é um poema do meu livro “Fogo Alto” (ainda sem publicação).
Daqui de onde estou é muito difícil sentir o Carnaval. É tanta roupa. E Carnaval precisa de corpo. Carne. Corpo aberto. Permeável. Quase translúcido. Mas eu carrego uma tradição comigo: não importa onde, na hora da apuração eu preciso me conectar com aquelas vozes, “Acadêmicos do Salgueiro, nota 10”. Preciso ouvir esse ruído. Para saber que está se fechando. Mesmo que eu não tenha sentido. Fecha. Acabou.
Feliz ano novo!
Até a próxima Cascata,
Gahbe
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